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segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Revista Veja: A vitória da baderna. Em defesa da maioria.

Diante de uma polícia acuada, os arruaceiros se fortalecem e surgem mais violentos e destemidos do que no início dos protestos.
 Daniela Lima e Bela Megale
 Horas depois da ação coordenada de black blocs que deixou destruídas lojas de São Paulo e do Rio de Janeiro e espalhou o pânico nas duas cidades, o comandante-geral da PM paulista, coronel Benedito Meira, pediu licença para mostrar um vídeo ao governador Geraldo Alckmin. Além de oficiais da PM, estava presente à reunião toda a cúpula da Secretaria de Segurança do Estado. No filme, gravado na segunda-feira em frente à Secretaria Estadual de Educação, no centro da capital, o que se via era uma fileira de mascarados vestidos de preto avançando na direção de uma acuada tropa de policiais militares. Provocando os homens com gritos como "não estudou, tem que estudar, para não virar polícia militar", os mascarados começam lançando pedras na direção da tropa. "Calma. calma", orienta o oficial responsável pelo agrupamento. Em seguida, vêm as bombas. São três estouros. Os policiais permanecem no lugar, tentando se defender atrás dos escudos. No fundo, a voz do comandante desestimula qualquer outra reação. "Mantenham a calma, mantenham a calma", insiste.
Ao ver o filme, um dos oficiais afirmou: "Eu não entro em favela com um 38 para combater traficante armado de fuzil. Também não posso reagir com um cassetete contra quem vem para cima com coquetéis molotov". No mesmo dia, Alckmin decidiu revogar a proibição do uso de balas de borracha, suspenso desde 17 de junho. Quatro dias antes, uma atuação descontrolada da Tropa de Choque da PM atingiu com balas de borracha dezenas de manifestantes e jornalistas que cobriam protestos na região central de São Paulo. Desde então, as balas foram banidas no estado—junto com a autoridade da polícia, que passou a atuar intimidada, incerta de seus limites e receosa do julgamento da opinião pública. No Rio de Janeiro, uma situação parecida ocorreu. Depois dos primeiros protestos de junho, dos quais dezenas de pessoas saíram feridas, os policiais não só pararam de impedir as depredações como se deixaram encurralar por arruaceiros que invadiram a Assembleia Legislativa.
Além da hesitação das polícias, nas duas cidades, afrouxaram-se os protocolos para lidar com as manifestações. Em vez de cumprirem a regra de informar previamente às autoridades horário e itinerário dos protestos, os manifestantes passaram a improvisar livremente seus atos. A polícia tinha de descobrir onde eles ocorreriam por meio das redes sociais ou à medida que aconteciam.
Tudo isso fortaleceu os black blocs. Na semana passada, eles mostraram que estão mais organizados e mais bem armados. Os pedaços de pau e pedras deram lugar a esferas de aço e coquetéis molotov, agora lançados com estilingues. Os rojões passaram a vir reforçados com bolas de gude e outros objetos, de forma a se transformarem em morteiros lançados contra a polícia. "Houve um aumento da ousadia desses grupos que se infiltram nas manifestações e atuam para desmoralizar o estado. Eles estão mais predispostos a partir para o enfrentamento", afirma o coronel Reynaldo Simões Rossi, comandante do batalhão que monitora a região central de São Paulo. "Tenho policiais afastados há mais de sessenta dias, homens com fratura de face, mandíbula e risco de perder a visão", afirma. Um desses feridos foi atingido na segunda por um rolamento lançado por estilingue. O lado esquerdo de sua face terá de ser reconstituído, e ele corre o risco de perder a visão. Não há dúvida de que a escalada da violência dos black blocs se deu no vácuo da atuação da polícia. "Ficamos entre a prevaricação e o abuso de autoridade", reconheceu o secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame.
Investigações da inteligência policial paulista mostram uma coordenação inédita entre os grupos de várias cidades, como se viu na segunda passada. Eles se provocam uns aos outros, numa competição para ver quem vai ser o mais violento. "Quando é que São Paulo vai dar um "salve"?, cutucaram cariocas, usando a gíria comum entre criminosos de facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) para designar uma ordem de ação criminosa. A comunicação se dá sobretudo por meio de redes sociais como o Facebook e a N-l. mais difícil de ser rastreada.
Na reunião de segunda-feira com a cúpula da segurança, o governador Alckmin recebeu das mãos do delegado-geral da Polícia Civil, Luiz Mauricio Blazeck, um relatório preparado pela equipe de inteligência que revelava, entre outras coisas, que para organizar protestos nas redes sociais os black blocs criam vários perfis falsos, de maneira a dificultar o rastreamento da polícia. A peça, com mais de 200 páginas, reúne informações trocadas pelos jovens que a polícia acredita serem os cabeças da violência.
Embora tardia, a contraofensiva do estado à ação dos black blocs parece que começa finalmente a ser traçada. Desde o início dos protestos, já foram abertos cerca de 100 inquéritos relacionados a vandalismo e agressões. Mas, como as investigações são dispersas, os casos não andavam. Agora, todas as informações sobre as lideranças dos black blocs serão organizadas em um único inquérito. A tática, espera-se. facilitará o enquadramento dos culpados em crimes como associação criminosa e formação de quadrilha, o primeiro passo para impedir que os presos de hoje de manhã estejam na rua à tarde.
"Hoje. na maioria dos casos, o policial leva o indivíduo para a delegacia e ele não passa nem uma noite lá", diz o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella. "Será que isso é suficiente para inibir e punir esses comportamentos que, mais do que causar dano, ofendem a paz pública, geram intranquilidade e afetam diretamente o direito de manifestação?", pergunta ele. Para quem não anda por aí de cara tapada e molotov na mão, a resposta certamente é não.
                               
Em defesa da maioria
Ao contrário do que ocorre no Brasil, os policiais dos países mais civilizados e democráticos do mundo são apoiados e admirados na contenção dos baderneiros
Há poucas semanas, no final da tarde de um sábado já não tão quente em Paris, os alto-falantes das linhas de metrô com estações na Champs-Élysées anunciavam, a cada dez minutos, que os trens não parariam para embarcar ou desembarcar passageiros na avenida mais conhecida da cidade, por motivo de segurança. Não havia problema nos trilhos ou ataque terrorista. Foi só uma maneira de evitar que uma passeata não autorizada contra o casamento gay fosse engrossada por simpatizantes ou confrontada por eventuais oponentes. Os manifestantes, um grupo católico autointitulado Veil-leurs. algo como "Vigias da Noite", haviam convocado simpatizantes para descer a Champs-Élysées, do bairro modernoso de La Défense em direção à Place de la Concorde, onde eles se concentrariam. acenderiam velas e rezariam pela revogação da lei aprovada neste ano. Na quarta-feira anterior, a polícia já havia anunciado que não permitiria a passeata divulgada pelas redes sociais, visto que não fora contatada por interlocutores do movimento para conversar a respeito do assunto. "Todos os cortejos em vias públicas devem ser precedidos por um aviso prévio, o que até o momento não foi feito", lembrou a polícia. Os manifestantes retrucaram, via redes sociais outra vez. afirmando que iriam fazer a passeata mesmo assim, porque eles andariam nas calçadas, e não no meio da rua. Bravata. Não houve passeata nenhuma — de trinta em trinta pessoas, sem carregar faixas ou gritar slogans, eles rumaram até a Place de la Concorde. Como era sábado à noite, e nada daquilo prejudicava a circulação na área, já havia sido permitido que executassem a sua pajelança por lá. sob os olhares de policiais e de poucos turistas.
Sim, você leu certo: na França, manifestações, sejam elas contra, a favor ou muito pelo contrário, precisam ser autorizadas pela polícia ou elas simplesmente não ocorrem. Se se desrespeita a proibição ou as normas que a regulam são burladas, o resultado é previsível e até desejável pela maioria dos cidadãos: entra em ação o aparelho de repressão do Estado, detentor, no contrato social, do monopólio das ações enérgicas. Na Inglaterra, as regras são semelhantes. Evidencie-se aos distraídos que não se está falando de ditaduras ou arremedos de democracia, como Cuba. Coreia do Norte ou Rússia, e sim do núcleo duro do Ocidente, onde a liberdade de expressão, informação e opinião é, mais do que cláusula pétrea das respectivas constituições, ingrediente da receita essencial que o formou. As manifestações ininterruptas no Brasil, da forma como vêm se dando, são chocantes no exterior porque é incompreensível para um cidadão europeu que, num país em que vigora a democracia plena, bandos de pessoas possam bloquear ruas a seu bel-prazer, infernizando o cotidiano de milhares de outras, para dar curso a reivindicações de quaisquer sabores. Quanto à invasão cotidiana de prédios públicos, de sedes de empresas e à depredação de bancos, lojas e estações de metrô — bem, aí parece mesmo coisa de outro planeta. O dos macacos.
A ordem e o respeito à lei não são empecilho a protestos que fazem parte do jogo democrático. Paris, na condição de capital francesa e centro de convergência internacional, é uma festa — em
especial, para manifestantes. Em Londres, não é diferente. Uma das principais caixas de ressonância mundiais, a capital inglesa conta com protestos frequentes, controlados por regras estritas e policiais com grande grau de autonomia para lidar com possíveis imprevistos. Neste momento, enquanto o repórter escreve, sírios pró-intervenção ocidental fazem algazarra lá embaixo, ao lado da Assembleia Nacional francesa, na pracinha Édouard Herriot. É um ritual quase diário. Os manifestantes chegam com antecedência em relação à hora combinada. Podem ser imigrantes ilegais africanos querendo documentos, árabes gritando contra regimes despóticos, franceses clamando por mais benefícios e por aí vai. Eles se instalam na pracinha bloqueada por grades e vigiada por soldados, pendurara os seus cartazes, agitam bandeiras, gritam, cantam, dão entrevistas a repórteres e, depois de duas a três horas, em média, se dispersam sem confusão, conforme o acertado, até as 9 da noite. Pois é, tem horário. Na gigantesca manifestação ocorrida contra o casamento gay, em janeiro, que reuniu 800000 pessoas aos pés da Torre Eiffel, sob um frio de freezer, os oradores apressaram os seus discursos porque tudo deveria terminar às 8 da noite, segundo o acordado com a prefeitura e as forças policiais.
Horário e lugar. Manifestações diante do palácio presidencial do Eliseu. Proibido. Do palácio do primeiro-ministro, Matignon. Proibido. Do Senado, no Jardim de Luxemburgo. Proibido. Da Assembleia Nacional. Proibido. De ministérios. Proibido. Em avenidas vitais para a circulação de carros e transporte público. Proibido. Neste ano, por duas vezes tentaram pegar as autoridades de surpresa na Place du Palais Bourbon, em frente à Assembleia. Na primeira, em janeiro, agricultores sequiosos por mais subsídios governamentais apareceram de manhã, espalharam alfafa nas adjacências do portão e, quando estavam para soltar uma vaca amedrontada, pobrezinha, de dentro de um caminhão (ótima imagem para jornais e TVs), policiais chamados às pressas os impediram de fazê-lo. Uma hora mais tarde, mais ou menos, a praça estava limpa — de manifestantes, alfafa e vaca. Na segunda, em maio, os Veilleurs irromperam à noite e se sentaram no chão da praça. Queriam fazer uma vigília de orações madrugada adentro. Foram cercados por soldados, e um sargento lhes comunicou que seriam retirados à força, caso resistissem a sair. O argumento de que queriam apenas rezar não comoveu as almas uniformizadas. "Rezar. Aqui, também não pode", replicou o sargento. Tudo acabou na santa paz laica.
Na França, um decreto-lei de 1935 (há oitenta anos. portanto) definiu os parâmetros a ser obedecidos por quem deseja exercer o direito de protestar nas ruas. Eis alguns:
Com três dias de antecedência, no mínimo, três organizadores devem enviar uma declaração por escrito à prefeitura ou ao comando da polícia sobre a intenção de fazer uma manifestação. Dessa declaração precisam constar os seus nomes completos, os seus domicílios fixos, o dia, a hora e o itinerário a ser seguido pelo cortejo ou, no caso de ser apenas uma concentração de pessoas, sem passeata. o local escolhido para a gritaria.
Se a prefeitura ou a polícia estimarem que a manifestação constitui ameaça grave à ordem pública ou que o aparato policial não está apto a garantir a segurança. elas poderão proibi-la.
Antes que o leitor veja no segundo item uma forma de filtrar inconveniências ideológicas, diga-se que as interdições. por lei, devem ser exceção e que, na hipótese de os organizadores se acreditarem censurados, existe a possibilidade de recorrer a um juiz, em caráter de urgência. Das centenas de manifestações que ocorrem em Paris a cada ano, não mais do que seis são vetadas. De acordo com a prefeitura. 40% são relativas a assuntos estrangeiros. Os sírios lá embaixo, na Place Édouard Herriot, por exemplo.
Governadores brasileiros decidiram proibir o uso de máscaras em manifestações. Não há nada de autoritário nisso. É uma ótima maneira de domar os incivilizados que se infiltram em atos que se querem civilizados — e de começar a civilizar quem pede mais civilização, mas dá uma piscadela cúmplice aos baderneiros, para em seguida jurar que nada tinha a ver com eles. Segue-se, aqui, a cartilha da França, da Inglaterra e do Canadá. Um decreto-lei do governo francês de 2009 vetou as máscaras completamente, seja no interior de um protesto, seja nos seus arredores, como forma de prevenir a ação de arruaceiros. Os desobedientes são detidos, fichados e têm de pagar uma multa de 1500 euros (ou 4500 reais). Em caso de reincidência no prazo de um ano, o valor dobra. No Canadá, uma lei aprovada recentemente pune com pena de até dez anos de prisão quem participar mascarado de qualquer perturbação da ordem pública. O motivo foi um tumulto em Vancouver, quando o time de hóquei no gelo local perdeu a final do campeonato americano e o centro da cidade ficou praticamente em ruínas. Não é preciso pedir autorização para organizar protestos, desde que eles não obstruam ruas nem calçadas. Os policiais acompanham os cortejos e só entram em ação quando a coisa sai do controle. Foi o que ocorreu em Toronto, em 2010, durante uma reunião do G20 na cidade. Black blocs, sempre eles, resolveram incendiar viaturas de polícia e destruir agências bancárias. Centenas deles foram presos e processados. "É o que fazemos com criminosos", resumiu o prefeito David Miller.
Nos Estados Unidos, o histórico de repressão desmesurada aos movimentos em defesa de liberdades civis, na década de 60, principalmente, constrange até hoje as autoridades de cada estado americano no estabelecimento de normas mais rígidas para manifestações. "No entanto, impor restrições de tempo, lugar e organização a protestos passou a ser prática comum, embora não inteiramente formalizada", diz o sociólogo Alex Vitale, especialista em movimentos sociais do Brooklyn College, em Nova York. Em geral, são exigidos pedidos de permissão para ajuntamentos que excedam cinquenta pessoas, sem que sejam necessárias maiores especificações. De qualquer forma, badernas estão longe de ser toleradas. Desde 1998, o direito de protestar tomou-se mais restrito no país, se for considerado uma perturbação da segurança nacional — termo que costuma designar eventos que contem com a presença do presidente americano e convenções de partidos políticos. "Observamos que a polícia vem utilizando mais energia em oportunidades em que há pouca provocação por parte dos manifestantes"", critica o especialista em resolução de conflitos Stephan Sonnenberg. Talvez o senhor Sonnenberg pensasse diferente se estivesse do outro lado dos escudos de choque. É proibido, no entanto, policiais à paisana se misturarem a manifestantes. A sua identificação precisa estar bem visível, ao contrário do que acontece na França, onde quase sempre há agentes disfarçados em meio a manifestantes. Por ocasião dos protestos do movimento Occupy Wall Street, Nova York ressuscitou uma legislação municipal datada de 1845, reeditada em 1965, que bania o uso de máscaras fora do âmbito de festas. Justificou-se dessa maneira a prisão de sete pessoas que usavam a carranca do personagem Anonymous. A detenção de mascarados não é automática na cidade americana, mas, dependendo da situação, a lei escuda os policiais.
O uso de máscaras não é proibido na Inglaterra, mas os policiais têm o direito, por lei, de pedir a um manifestante que mostre o rosto em situações nas quais eles julguem o sujeito perigoso à ordem pública. Isso inclui maquiagens ou pinturas faciais que escondam a sua identidade. "Uma pessoa que se recusa a remover um item de vestuário ou outro qualquer, quando isso for solicitado por um policial no exercício da sua atividade, comete uma infração e poderá responder por isso", disse a VEJA Dave Lockyear. responsável pela comunicação da polícia de Londres. Os policiais encarregados de zelar pelo bom andamento de um protesto podem deter um suspeito por um prazo de até 24 horas, extensível por outras 24. período suficiente para que as engrenagens da Justiça entrem em funcionamento, seja para abrir um inquérito, seja para liberar o detido. As regras para manifestações na capital inglesa são detalhadas como as de Paris, com a diferença de que é necessário notificar as autoridades com seis dias de antecedência, no mínimo, e de que basta fornecer os dados de um único organizador. O lado quase enternecedor é que a polícia londrina chama atenção para os benefícios que tem quem obedece às normas: "Você pode encontrar a garantia de que o seu evento ou protesto não se chocará com o de outro grupo que pretenda utilizar os mesmos locais": " Nós poderemos facilitar a realização do seu protesto no que for possível e aconselhá-lo sobre a melhor forma de gerenciá-lo": "Nós poderemos mantê-lo a par de qualquer informação a respeito de quem queira protestar contra o seu protesto".
O carrasco-mor da Revolução Francesa. Maximilien de Robespierre, afirmou, em 1794, que. "quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é para o povo o mais sagrado e o mais indispensável dos deveres". No mesmo ano, ele perderia a cabeça na guilhotina, em outra prova de como, naquele período, a violação dos direitos populares ainda era uma questão que dependia somente do ponto de vista de quem puxava a corda que fazia descer a lâmina. Paris foi moldada fisicamente por insurreições — essa é a palavra que interessa aqui. No fim do século XVIII, os revolucionários aproveitaram-se das estreitas e tortuosas ruas medievais para erguer barricadas, fugir das tropas reais ou encurralá-las. A intrincada malha urbanística ajudou-os, assim, a derrubar a prisão da Bastilha, promover o quebra-quebra de outros símbolos da monarquia absolutista e vanda-lizar igrejas. Durante a "primavera dos povos", em 1848, idem. Em 1871, com a maior parte das reformas efetuadas por Georges-Eugène Haussmann já realizadas, os rebeldes da Comuna de Paris encontraram muito mais dificuldade para manter a cidade em seu poder.
Isso porque, sob os auspícios de Napoleâo III, sobrinho do Bonaparte corso, Haussmann havia posto abaixo o emaranhado de casarios insalubres da Idade Média, retificado os quarteirões, rasgado a paisagem com avenidas largas e parques e definido o gabarito para as construções parisienses que vigora até hoje inalterado no essencial. O propósito ia além do embelezamento e da modernização da capital da França. Tratava-se, ainda, de desenhar uma geografia que permitisse às autoridades mais eficácia na contenção de insurreições — eis aí a palavrinha outra vez —. por meio do rápido deslocamento de soldados e do uso de canhões. Os (pouquíssimos e tardios) resistentes franceses, aliás, experimentaram o efeito Haussmann sob a Paris ocupada pelos nazistas. Em maio de 1968, os estudantes amotinados no Quartier Latin lançaram mão da derradeira arma antiga à disposição de insurretos — paralelepípedos arrancados do pavimento das ruas. O governo do presidente Charles de Gaulle, então, decidiu asfaltar a região conhecida como a Velha Paris.
As insurreições no Ocidente — contra reis tirânicos, metrópoles coloniais, ditaduras ou invasores estrangeiros — foram um fator decisivo para a construção da democracia. O seu sucedâneo, numa escala que se diria evolutiva, são as manifestações pacíficas, como forma de pressão sobre os representantes do povo nos poderes constituídos. No berço do Ocidente, elas são asseguradas pelo artigo 10 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e pela Convenção Européia dos Direitos Humanos. A redação desta última é exemplar: "A liberdade de manifestar a sua religião ou as suas convicções não pode ser objeto de restrições que não aquelas que, previstas pela lei, são necessárias, em uma sociedade democrática, para a manutenção da segurança, a proteção da ordem, a saúde ou a moral públicas, ou a proteção dos direitos e das liberdades dos demais indivíduos". Ou seja, insurreições na plena vigência do estado de direito não passam de tentativa de destruição do arcabouço democrático e, por isso, devem ser reprimidas.
Nos países civilizados, insurreição é um conceito que se estende do enfrentamento armado com as forças da ordem à desobediência constante aos marcos reguladores das manifestações legítimas. Marcos que, no caso específico das passeatas, visam a que a liberdade de expressão não se sobreponha a outra liberdade fundamental: a de ir e vir de todos os cidadãos. Nesse contexto, a polícia está investida do poder de reagir com firmeza contra aqueles, que desrespeitem os limites e confrontem a democracia. Em março, o movimento contra o casamento gay (ainda é o maior assunto na França, fazer o quê? promoveu quatro passeatas simultâneas em Paris. Numa delas, um grupo de ultradireita resolveu promover um débordement. um transbordamento do circuito combinado. Os policiais impediram a ação, os ultradireita decidiram enfrentá-los — e tomaram pau. Ninguém, absolutamente ninguém, censurou o uso de força. Pelo contrário,"a polícia foi elogiada à esquerda e à direita. Tome-se um exemplo oposto. Na comemoração da conquista do campeonato francês de futebol, em maio, o Paris Saint-Germikin escolheu como palco (la festa o Trocádéro. o lugar de onde se tem; a melhor vista para a Torre Eiffel. No fim, arruaceiros iniciaram uma confusão. Os policiais partiram para cima, conforme o manual, com o lançamento: de gás lacrimogêneo e o disparo de balas de borracha — mas se viram criticados por não ter evitado a bagunça.a tempo. Dá para imaginar isso no Brasil?
Cassetetes, tasers, canhões sônicos, balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo, fazem parte do equipamento dos policiais destacados para enfrentar multidões. Eliminá-los, como chegaram a sugerir desmiolados em São Paulo, equivaleria a mandar um gladiador desarmado para uma arena cheia de leões. É importante notar que todas essas armas foram desenvolvidas para não causar mortes nem ferimentos demasiado graves, quando usadas com perícia. São sinônimo de energia, não de selvageria, como parecem acreditar os sambistas brasileiros que defendem os black blocs contra a polícia, numa inversão de valores que é uma das nossas tristes verdades tropicais. Às voltas, com motins violentos nas banliues, as periferias das grandes cidades, protagonizados em sua maioria por jovens imigrantes. As autoridades francesas, em 2011, deram um passo além. Se atacados com armas de fogo diante uma manifestação, os policiais foram autorizadòs a responder com balas de verdade - desde que provenientes de fuzis de repetição, calibre 7L62 x 51 mm.
Houve quem gritasse contra a medida, afirmando que se tratava de um retrocesso aos tempos de Napoleão Bonaparte. Boa parte da ascensão de Napoleão ao poder, se deve ao fato de ter esmagado, em 1795, uma insurreição monarquista que ameaçava a Convenção Nacional, a instância máxima de governo dos revolucionários franceses, instalada no então Palácio das Tulherias (incendiado em 1871. por ancestrais dos black blocs). Napoleão mandou as tropas sob o seu comando utilizar artilharia pesada —: canhões de boca larga, como os expostos nos Invalides, para ser mais exato — contra os rebelados, matando 1 400 deles. Evidentemente, trata-se de uma comparação exagerada. A permissão para usar armas de fogo contra manifestantes é restrita a casos extremos e só foi possível porque os franceses contam com policiais muito bem treinados.
Em 1969, um ano após os distúrbios causados pela estudantada da Sorbonne, em Paris, Charles de Gaulle inaugurou o Centre National d"Etrainement des Forces de Gendarmerie (CNEFG), onde as forças antimotim são adestradas para executar as suas funções. Todos os policiais perencentes a essas corporações passam pelo complexo localizado em Saint-Astier, a 500 quilômetros a sudoeste de Paris que nos seus 140 hectares abriga até mesmo uma pequena cidade artificial que serve de cenário à simulação de revoltas. De dois em dois em anos, os gendarmes, como são chamados esses soldados na França são obrigados a fazer uma reciclagem no CNEFG, que, como o maior centro desse tipo na Europa,, recebe alunos da Itália, Espanha e Holanda, entre outras nações. O lema do CNEFG é ""O policial age como ele treina. Ele, enquanto, deve adestrar-se como quer agir". A responsabilidade é desse meio, também do guardião da ordem, graças ao treinamento intenso e contínuo, você jamais verá um batalhão francês acuado como os pelotões de choque brasileiros. Recomenda-se aos governantes brasileiros estabelecer uma parceria com o CNEFG.
Agora, no fim desta reportagem, os sírios pró-intervenção ocidental deram lugar a manifestantes africanos que pedem o visto de residência permanente na França. São os mais barulhentos, mas nenhum deles ousa pensar em atirar uma pedra numa das janelas da Assembleia Nacional.
Revista Veja 14/10/2013
Fonte: Asmetro-SN

Um comentário:

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